Leituras para estes dias do verão. Agora têm todo o tempo do mundo. Alguém se anima a ler até ao fim este conto? Se não compreenderem todas as palavras, não faz mal, algumas delas podem procurar no dicionário e outras tentar imaginar qual o significado...
A Voz da Terra
Um rei que vivia solitário, certo dia, lembrou-se de mandar construir um palácio que fosse uma grande maravilha. E para que essa construção ficasse de facto grandiosa, pensou que só poderia erguê-la sobre uma alta coluna cujo alicerce infinitamente forte pudesse, em verdade, sustê-la. Chamando o seu íntimo ajudante, deu-lhe esta ordem:
— Desejo que mandes alguns homens a todas as florestas e bosques do universo a fim de encontrarem a árvore mais ampla e mais alta que houver debaixo do sol. Não te surpreendas, vai.
E trinta rachadores de madeira partiram à procura da árvore gigantesca. Semanas depois, regressaram:
— Encontramos a árvore, mas é impossível transportá-la.
— Levem cavalos para a trazer! – exclamou o rei.
— Não poderiam com ela.
— Algumas centenas de bois?
— Não poderiam com ela.
— Todos os meus elefantes?
— Também não será bastante.
— Pois seja como for; dentro de um prazo de oito dias, quero a árvore aqui! – disse, por fim, com azedume.
E os trinta leais servidores, de cabeça baixa, e em silêncio, partiram para a floresta. Porém uma outra árvore surgiu ainda mais bela. Era uma árvore venerada por todos os habitantes desse pequeno lugar e arredores, porque viviam na ilusão – ou na certeza! – de que um deus nela habitava e que a essa presença divina é que a árvore devia a sua exuberante formosura e o seu aspecto tão alto, tão forte, maravilhoso! Entretanto, o rei ordenou que a derrubassem porque só ela poderia ser a coluna do seu desejado palácio. Descantes e danças, abraços e beijos, à roda do velho tronco, misturavam-se na voz de alguém que a cantar dizia:
Deus, oculto e generoso,
Procura outra morada,
Que esta árvore frondosa,
À ordem de El-rei senhor,
Vai, por nós, ser derrubada.
A folhagem estremeceu; as ramarias mais altas inclinaram-se, chorosas, e um vago lamento se ouviu:
— Se o vosso rei teimar nesse propósito, todas estas árvores de fruto e todas estas plantações que crescem à minha volta ficarão também destruídas. Digam, pois, ao vosso rei, que esse desejo é cruel. Contudo, se ele teimar, humildemente me entrego...
Nessa noite, enquanto o soberano dormia, o Deus da árvore venerada apareceu-lhe e ao ouvido assim falou tristemente:
— Sei eu que mandaste derrubar a árvore maior e mais alta da floresta. Venho pedir-te que não pratiques esse monstruoso crime.
— Mas onde vou eu encontrar a coluna para o palácio que quero mandar construir?
— Raciocina, Rei sabedor: durante quatro mil anos recebi a adoração de todos os habitantes destas povoações vizinhas e, em troca, só benefícios saíram das minhas mãos. As aves adormecem, cantam e vivem nos meus ramos. Espalho sombra e bem-estar ao caminhante fatigado pelas ardências solares. Estão comigo a paz e o bem.
— É verdade quanto dizes, ó alma dessa árvore formosa. Mas mantenho o que desejo.
— Está bem; não devo contrariar-te. Só uma coisa ainda te peço. Manda-a cortar por três vezes. Primeiro, a cabeça coroada de folhagem verde; depois, o tronco com os seus braços abertos ao amor e ao infortúnio; e, por fim, as raízes que são tantas e tão profundas que hão-de abalar a terra inteira.
— O que me pedes surpreende-me pela originalidade. Até hoje ninguém me pediu que lhe tirasse a vida por três vezes! Porque não queres suportar a morte num golpe certeiro?
— Eu te respondo, rei inteligente: à volta de mim cresce e vive a minha família. Variadíssimas árvores prosperam à minha sombra generosa. Se eu tombar de um arranco, o meu corpo pesado e enorme, vai, certamente, mutilar essas vidas florescentes; mas, se cair por três vezes e em três bocados, será mais suave o desastre, por elas e não por mim!
No dia seguinte a ordem do rei era esta:
— Não quero que derrubem essa árvore! Nela mora um espírito de tanta beleza moral que é necessário respeitar e ouvir. As árvores são sagradas. Para edificar a minha casa outra coluna se arranjará; talvez de bronze ou de prata, ou, talvez, unicamente deste infeliz coração que bate aqui no meu peito.
António Botto
Do livro Os Contos de António Botto
Lido no blogue Contos de aula
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