Ilustração de Jorge Miguel
Espero que gostem desta fábula da cegonha e da tartaruga:
Até à vista!
– Vou partir para as terras quentes do Sul – declarou a cegonha com visível orgulho. – Desde que anunciaram tempos difíceis, não penso noutra coisa.
– Quem é que anunciou tempos difíceis? – perguntou a tartaruga com um bocejo.
– O boletim meteorológico. Falaram de vento, chuva, frio, enfim, só de coisas desagradáveis. E eu, sempre que posso, fujo do que me aborrece.
– Foges?
– Bom, é uma força de expressão. Sabes que aproveito todos os pretextos para uma viagenzinha.
Certa de que despertaria inveja, a cegonha pôs-se a descrever as delícias de que desfrutava nas suas viagens:
– Oh! Levantar voo, bater as asas, lançar-me à aventura! Hoje uma terra, amanhã outra... tu sabes lá o que se encontra por esse mundo fora. Há cada animal!
– Imagino – respondeu a tartaruga.
– Não imaginas, não. Ora diz-me, consegues fazer passar pela tua cabeça uma manada de bichos que parecem pacíficos e de trato fácil, mas que afinal são indomáveis e nunca nada, nem ninguém conseguiu domesticar?
– Nada mais simples, são zebras.
Um pouco desconsolada, a cegonha insistiu:
– E um mastronço de pele dura como sola, míope, neurótico e com um corno só?
– Nada mais fácil. É o rinoceronte.
A cegonha já estava a ficar irritadíssima e pensava:
- Então eu que tenho asas, eu é que viajo, eu é que convivo com seres exóticos e esta estúpida da tartaruga, que nunca saiu da praia, sabe tanto como eu? Não pode ser . tenho de arranjar maneira de a surpreender ou mesmo de a embaraçar!
Cheia de más intenções, perguntou de novo:
– Já viste uns pássaros coloridos que falam, falam, mas não dizem nada, porque se limitam a repetir o que outros já disseram?
Pachorrenta como é de seu natural, a tartaruga abanou a cabeça, encolheu-se na casca, voltou a esticar-se. Parecia ter pouca vontade de responder.
– Então? Perdeste a língua? Se calhar nunca encontraste nenhum destes pássaros.
– Ó filha, o que mais há por aí são papagaios.
Quase enraivecida, a cegonha começou a falar como uma matraca:
– E os bichos que carregam os filhotes numa bolsa até eles serem bem grandes? E as aves que põem os ovos nos ninhos alheios, porque não estão para se maçar a tratar das crias? E os grupos que guincham com voz esganiçada, pouco se importando se incomodam ou não as pessoas? Conheces?
– Cangurus, cucos e macacos – foi a resposta seca.
A cegonha calou-se, descorçoada. E mais descorçoada ficou quando a tartaruga resolveu por sua vez fazer perguntas.
– Então agora diz-me cá tu que viajas tanto. Qual é a ave mais rápida do mundo?
A cegonha engoliu em seco, porque se cruzara com todas as espécies, mas nunca lhe ocorrera averiguar a que velocidades se deslocavam.
– Tolices – resmungou. – Querias que eu andasse a cronometrar os voos de cada um? Tenho mais que fazer!
– Bom, então diz-me onde é que os caracóis têm os olhos.
– Os caracóis? Sei lá! São tão pequenos que nunca me despertaram qualquer interesse. Gosto de animais grandes, porque só os grandes têm importância neste mundo.
- Muito bem. Nesse caso, suponho que sejas íntima do lobo cinzento da América.
A cegonha ficou radiante:
- Claro! É um grande amigo meu. Ainda há tempos estivemos juntos num jantar.
Disfarçando um sorrisinho irónico, a tartaruga inquiriu com ar ingénuo:
- De que é que ele se alimenta?
- Ãa… do mesmo que os outros, com certeza. Não reparei, porque é falta de educação reparar no que as pessoas comem…
A conversa tomara, afinal, o rumo inverso do que a cegonha pretendia. Tanto quisera deslumbrar a tartaruga com os seus conhecimentos e acabara fazendo uma triste figura. A outra sabia muito mais do que ela! Isso irritava-a, mas também a enchia de curiosidade. Como é que, sem sair de casa, uma pessoa podia andar tão bem informada? Não resistiu a perguntar. A tartaruga riu-se.
– Como é que eu estou bem informada? É muito simples, cara amiga…
– Então explica.
– Não explico. Vem comigo e verás com os teus próprios olhos. Segue-me!
Lá foram então as duas, uma pela água e outra pelo ar.
Depressa chegaram ao destino: uma gruta simpática, coberta de algas por fora e muito bem arranjada por dentro. Areia fofa, conchas, búzios e livros. Livros a não acabar mais! Uns de capa dura, outros de capa mole, com desenhos maravilhosos ou quase sem desenhos nenhuns, pequenos, médios, grandes, finos, grossos, delicados, resistentes, mínimos e descomunais!
– O segredo está aqui, não me desloco, mas viajo pelos caminhos da leitura. Só preciso de óculos, e de imaginação!
A cegonha estava encantada. Folheou ao acaso e, sem grande esforço, descobriu logo pormenores deliciosos nas legendas das figuras.
- Que engraçado! Diz aqui que a ave mais rápida do mundo é o falcão-peregrino. Não fazia a mínima ideia que ele podia atingir 300 quilómetros por hora!
-E se reparares nas outras imagens, ficas a saber que o caracol tem olhos nas antenas e que o lobo cinzento da América come alces, coiotes e coelhos, aos oito quilos de cada vez.
- Que giro!
- Pois é! Divirto-me muito sem sair desta gruta. Como não tenho asas e a carapaça pesa bastante, ainda não me surgiu uma boa oportunidade para viajar. Mas um dia hei de partir e nessa altura, estarei preparada para ver o mundo com os olhos abertos.
- Se eu tivesse forças, levava-te comigo- disse a cegonha, num tom bem mais amistoso. – Deves ser a melhor das companheiras! Mas, já que é impossível, no regresso, passo por cá. Gostaria de dar uma olhada nos teus livros. Pode ser?
- Podes, Claro. Aparece que tenho aí muitos jornais e revistas com histórias e informações sobre terras longínquas.
- Combinado tartaruga. Logo que o tempo melhore, volto. Está Bem?
- Está. Fico à tua Espera.
- Até à vista, amiga!
- Até à vista!
Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada
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