A Maria queria aprender com a avó a coser. Coser com linhas, agulhas e dedais. A avó estava sempre a coser. A avó tinha-lhe feito bibes e vestidos de festa, e tinha feito vestidos para as suas bonecas. Ah, e camisas de noite, muito compridas, que pareciam vestidos de baile, e que a Maria usava quando dormia em casa das primas, a quem a avó também tinha feito camisas de noite iguais. Normalmente, eram aos quadradinhos.
A avó também fazia colchas com losangos de tecido, todos cosidos uns aos outros, bocadinho a bocadinho, até que eram muitos tecidos num só, com todas as cores possíveis e imaginárias. Chamavam-se colchas de patchwork, ou de retalhos, como também se dizia.
A colcha da cama da avó e do avô era assim, e quando a Maria dormia em casa dela, faziam um jogo juntas. Depois do banho, quando já estava penteada e com os dentes lavados, a Maria sentava-se num canto da cama e apontava para um tecido às flores:
– Veio de onde avó?
– Olha, olha, esse às flores é do vestido que usei para o casamento da tia Meana.
E a avó fazia um sorriso muito meigo, e via-se que, na cabeça dela, aparecia o dia em que a filha mais velha se tinha casado.
– E aquele, cor-de-rosa às pintinhas? – apontava a Maria.
– Gosto tanto desse. Não gostas, Maria? Esse, esse era dos vestidos que fiz para a Sofia, para a Marta e para a Mariana. Ficavam tão queridas, todas de igual. E a avó começava a sorrir outra vez, porque se lembrava de quando as netas mais velhas eram pequeninas.
– Mas só há aqui bocadinhos da roupa de meninas? – perguntou a Maria. – É uma colcha de meninas? – insistiu.
– Não, não, nada disso. Olha ali para aquele tecido das risquinhas azuis? É uma camisa do avô Francis, que já estava muito velhinha. Tive de lha tirar às escondidas – dizia a avó a rir. – Ele só gostava de usar as mais gastas… E olha, Maria, aquele, aquele e aquele – e continuava a apontar, o dedo muito rápido – são dos bibes do tio Peter, do tio Martin, do tio Nerny e do tio Dodi.
Os olhos da avó brilhavam:
– Tenho muita sorte em ter tantos filhos e tantos netos e agora que me estás a chamar a atenção para cada losango, percebi que os tinha todos nesta colcha. É um patchwork de todas as pessoas para quem já cosi.
Era por isso que a Maria queria aprender a coser assim; aqueles pontos perfeitos e muito pequeninos, sempre iguais, com que a avó juntava todos os bocadinhos importantes da sua vida.
A Maria ultimamente andava triste, e achava que se conseguisse aprender a coser, se calhar podia remendar as coisas que estavam mal, porque as camisas ficam velhinhas, os vestidos rasgados, e até as camisas de noite deixam de nos caber quando crescemos. Mas, a avó não deitava essas coisas fora, juntava-as todase, em vez de transformar aqueles tecidos em panos do pó, fabricava colchas, colchas tão bonitas.
A Maria ganhou coragem e perguntou:
– Avó, a avó também remenda corações?
A avó olhou para ela, para a sua neta de cabelos castanhos e compridos e olhos muito grandes, e teve vontade de perguntar muita coisa. E até de chorar. Mas a avó não era pessoa de perguntar muitas coisas, nem de chorar muitas lágrimas, a avó era mesmo de remendar, o melhor que podia e sabia. Por isso, pondo-se muito direitinha no canto da cama em que estava sentada, disse:
– Como vês, Maria, sou muito esperta, consigo juntar os bocadinhos mais pequenos de tecidos e fazer colchas, e antes das colchas fiz vestidos e camisas de noite, e camisas, por isso, sim, sei remendar corações. Se me deres o teu, fica pronto até amanhã de manhã. A Maria estendeu o coração dela à avó e adormeceu na cama que era do avô, antes dele ter ido para o Céu. Quando acordou de manhã, tinha, ao pé da almofada, o seu coração, todo inteiro e sem rasgões. Arrumou-o no sítio dos corações e sentiu-se cheia de fome. Saltou da cama e comeu o maior pequeno-almoço que alguma vez uma menina pequenina comeu.
Muitos anos depois esteve ao lado da avó quando ela fechou os olhos e foi ter com o avô, e não ficou muito, muito triste, porque a avó tinha um sorriso muito contente na cara, porque sabia que, para além do avô, ia ser recebida à porta do Céu por Deus, que ela já conhecia muito bem, e há muitos anos, mas a quem nunca tinha apertado a mão, assim mão na mão, como na Terra se aperta às pessoas de quem gostamos.
A avó não se tinha esquecido daquele dia em que ela e a Maria tinham descoberto a família em cada bocadinho de pano daquela colcha. Deixou a colcha à Maria. Quando a estendeu sobre a sua própria cama, a Maria viu que havia um losango que era muito mais recente do que os outros: a avó trocara um dos mais antigos, por outro feito com um bocadinho do seu coração. Só para a Maria.
Isabel Stilwell é uma jornalista e escritora portuguesa.
Ilustração de Carla Nazareth
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