O TPC para depois de amanhã, quarta-feira, é ler este trecho de "um dos mais significativos livros de contos da moderna literatura portuguesa", e depois falar um bocado do que aí se conta na sala de aula.
Certa manhã, meu pai ordenou-me inesperadamente:
- Diz a tua mãe que te vista o fato novo para ires tirar o retrato.
Admirei-me:
- Mas hoje não é dia dos meus anos...
- Pois não. Mas lá em Beja precisam de dois retratos teus. É para te identificarem.
- Identificarem?
- Sim. Para saberem que és tu e não outro.
- Não percebo - recomecei, desconfiado.
- Como podem eles supor que vai outro em meu lugar?
Daqui por diante, a conversa complicou-se de tal modo que meu pai perdeu a serenidade; gritou-me:
- Faz o que te digo, rapaz!
Fiz. Nada mais havia a replicar quando meu pai me chamava rapaz. Era uma regra que, à custa de alguns sopapos, eu acabara por introduzir nas nossas relações. Respeitando a regra, fui, pois, a minha mãe, que me vestiu de ponto em branco.
Daí a pouco, com grande escândalo dos meus amigos, passei pelo largo, a caminho de casa do Sr. Rodrigo. Passei vestido «à mamã», expressão que entre nós designava, não apenas o fato, mas certos rapazitos, medrosos e tímidos, quase sempre vestidos daquele modo e que, por isso, achávamos que não sabiam brincar nem prestavam para nada. A peça de roupa que mais caracterizava um «mamã» era o colarinho gomado aberto sobre o casaco e tapando-o até aos ombros. E eu, tido e respeitado como um rapaz às direitas, lá ia de enorme colarinho de goma, ao lado de meu pai.
Nem olhava para ninguém.
E, ainda hoje, após tantos anos, sinto vergonha. Não já pela gola, mas pelo rosto de estarrecido espanto com que fiquei no retrato.
Manuel da Fonseca, in O fogo e as cinzas (1951)