Bairro de Alfama e Rio Tejo em Lisboa

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Não sou capaz (António Torrado)



A águia de penugem branca ainda não tinha saído do ninho. Via o pai e a mãe, num voo alto, rente às nuvens, e pensava: "Nunca vou ser capaz". O pai e a mãe traziam-lhe comida no bico. A aguiazinha devorava os petiscos, gulosa.

- Não engulas tudo de uma vez, que ainda te engasgas - recomendava-lhe a mãe.

Mas a aguiazinha não queria saber. Tinha fome, muita fome, uma fome insaciável, que ela não sabia controlar. Algumas penas de brancas passavam a cinzentas. O corpo ganhava elegância. As asas cresciam.

Os pais iam e vinham, num voo planado, que era a admiração da filha. "Nunca vou ser capaz de fazer o mesmo", pensava.

- Amanhã começas a aprender a voar - disse-lhe o pai.

Mas, nesse dia, choveu e a lição foi adiada. Os pais é que não desistiram de caçar. Deixaram-na só, no quente do ninho.

Estava ela aconchegada e contente pelo adiamento da lição, quando sentiu um roçar de perigo, nos ramos perto. Era uma serpente, que se desenroscava por um tronco, em direcção a ela.

A aguiazinha piou, aterrorizada. Eriçaram-se-lhe as penas. Bateu as asas, para afugentar a intrusa de língua silvante. A serpente continuava a deslizar para ela, segura da presa. Ia armar o último salto. Ia destroçá-la. Ia comê-la.

Bateu a águia as asas com mais força e suspendeu-se no ar. Num impulso de pânico, largou o ninho. Ia cair. Não caiu.

Soltou-se no ar, a curta distância da árvore que abrigara o ninho. Sentiu uma tontura. Agarrou as patas a um ramo, mas o ramo cedeu. Agitou as asas com mais força e elevou-se nos ares. Tudo aquilo lhe parecia impossível. Ela voava.

Quando os pais regressaram, a aguiazinha, de asas distendidas, como se quisesse abarcar o céu num grande abraço, voou, feliz, ao seu encontro.

António Torrado

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